19 junho 2009

O homem que calculava

Um ensaio biográfico sobre Renato Russo mostra o planejamento cuidadoso com que ele conduziu sua carreira artística e fala das saborosas excentricidades que fizeram sua fama.

NÃO FOI TEMPO PERDIDO
À direita, Renato Russo numa foto de 1995, um ano antes de morrer: imobilizado na cama por uma doença na perna, ele projetou, ainda adolescente, a banda que anos depois seria o Legião Urbana

Em 1975, Renato Manfredini Jr., então com 15 anos, foi diagnosticado com uma condição que o imobilizaria na cama pelos dois anos seguintes. Sofria de epifisiólise – um desgaste dos ossos e cartilagens que faz a cabeça do fêmur se descolar da bacia. Nesse período de sofrimento e tédio, dedicou-se a criar uma banda de rock imaginária, a 42nd Street Band, na qual assumiria a persona do baixista e vocalista Eric Russell. Encheu cadernos e cadernos – em inglês – com a história da banda. Aos 19, já recuperado, o jovem dava os primeiros passos para realizar os projetos que esmiuçara nos seus rascunhos, como cantor e baixista do grupo punk Aborto Elétrico. Já adotara então o nome artístico com o qual ficaria conhecido: Renato Russo. Em 1985, ao lado do baterista Marcelo Bonfá, do guitarrista Dado Villa-Lobos e do baixista Renato Rocha, ele lançou o primeiro disco do Legião Urbana. Foi como letrista e vocalista dessa banda que Renato Russo se tornou o maior nome da história do rock brasileiro. Os treze discos do grupo e os quatro álbuns-solo do cantor somam 14 milhões de cópias vendidas – 300 000 unidades só no ano passado. Essa história de obstinação é narrada no saboroso Renato Russo: o Filho da Revolução (Agir; 416 páginas; 59,90 reais), do jornalista Carlos Marcelo, 39 anos, editor executivo do jornal Correio Braziliense.

O livro não pretende ser uma biografia completa e abrangente. É antes um ensaio biográfico, centrado na tormentosa relação de Renato Russo com Brasília, cidade com a qual o Legião Urbana sempre seria identificado. O tumultuado show da banda no estádio Mané Garrincha, em 1988 – em que Renato Russo brigou com o público e interrompeu a apresentação com menos de uma hora de performance –, ganha um lugar central na narrativa de Marcelo. As relações amorosas de Renato Russo – com meninas e meninos, como dizia uma de suas letras –, as drogas e a morte em consequência da aids, em 1996, são tratadas de modo mais sucinto. Mesmo com essas lacunas deliberadas, O Filho da Revolução é um retrato mais profundo do músico do que O Trovador Solitário, biografia reverencial do jornalista Arthur Dapieve. Também é mais rico em documentos inéditos – fotos e fac-símiles de letras e notas do compositor, que farão a delícia do fã mais fetichista.

O novo livro mapeia as relações familiares dos roqueiros de Brasília com o governo, ao tempo da ditadura militar. O jovem Renato Russo – filho de um funcionário graduado do Banco do Brasil – quis muito conhecer o garoto que tinha uma guitarra Gibson, item raríssimo na década de 70, quando as barreiras alfandegárias eram rigorosas. O proprietário da guitarra tinha um canal seguro para importar instrumentos: seu pai, que viajava ao exterior como piloto do presidente Ernesto Geisel. O nome do garoto: Herbert Vianna, futuro líder dos Paralamas do Sucesso. No círculo dos jovens roqueiros, apareciam também futuros políticos. Renato Russo foi colega de aula do atual ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima. Gordinho, Vieira Lima foi maldosamente apelidado de "Suíno" pela turma do músico, que não tinha simpatia por ele. "Geddel é in-su-por-tá-vel", o roqueiro dizia aos amigos. O próprio Renato Russo sabia ser bem insuportável. Era o chato do gênero "cabeça". Metido a cinéfilo, certa vez se irritou com o enredo convencional de Brubaker, filme estrelado por Robert Redford – e se levantou no meio do cinema para insultar, aos gritos, a plateia "burra" que apreciava aquele lixo de Hollywood.

A excentricidade contribuiu para consolidar a aura de santo pop que cercaria Renato Russo em seus últimos anos. Mas nunca o impediu de conduzir a carreira de modo inteligente e calculado. Sua escolha dos integrantes do Legião Urbana é um bom exemplo. Cada um deles corporificava um "conceito" fundamental para a imagem da banda: Bonfá era o garoto bonito, Villa-Lobos tinha ares de menino-prodígio e Rocha, que era negro (e deixaria o Legião em 1988), conferia diversidade étnica ao conjunto. É claro que todo esse calculismo não teria adiantado nada se Renato Russo não fosse, além de obstinado, talentoso. Era habilidoso nas letras longas e complicadas que mesmo assim se prestavam à memorização fácil dos fãs – como Tempo Perdido e Faroeste Caboclo. De certo modo, o roqueiro de Brasília conseguiu encarnar o espírito de sua época. A juventude que se viu meio perdida entre o fim da ditadura militar e os primeiros anos de redemocratização deu voz à sua revolta sem objeto em canções como Geração Coca-Cola e Que País É Este. Renato Russo e o Legião Urbana acabaram sendo bem maiores do que Eric Russell e a 42nd Street Band.


BURGUESES SEM RELIGIÃO
À cima, a Legião Urbana na década de 80 e os manuscritos de Renato Russo, incluindo a letra de Geração Coca-Cola: canções que incorporaram o espírito de seu tempo

Algumas letras do do cara que eternizou a Legião:


Perfeição

Legião Urbana

Composição: Renato Russo

Vamos celebrar
A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja
De assassinos
Covardes, estupradores
E ladrões...

Vamos celebrar
A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação...

Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião...

Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade...

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta
De hospitais...

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E seqüestros...

Nosso castelo
De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia
E toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã...

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...

Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...

Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...

Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta
De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção...

Venha!
Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha!
O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!
Que o que vem é Perfeição!...


Fábrica

Legião Urbana

Composição: Renato Russo

Nosso dia vai chegar,
Teremos nossa vez.
Não é pedir demais:
Quero justiça,
Quero trabalhar em paz.
Não é muito o que lhe peço -
Eu quero um trabalho honesto
Em vez de escravidão.

Deve haver algum lugar
Onde o mais forte
Não consegue escravizar
Quem não tem chance.

De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica?

O céu já foi azul, mas agora é cinza
O que era verde aqui já não existe mais.
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada de tanto brincar com fogo,
Que venha o fogo então.

Esse ar deixou minha vista cansada,
Nada demais.

Fonte: Revista Veja, 10 de junho de 2009


Nenhum comentário:

Postar um comentário